Por Vinicius Pinheiro de Sant’Anna
O advogado é
frequentemente questionado por clientes (e amigos) sobre quais as “chances” que
têm de ganhar ou perder uma determinada demanda judicial. Ainda que se tenham
todos os dados e informações “em mãos”, a resposta acaba sendo, quase sempre,
insatisfatória. Lamentavelmente, o que mais se produz judicialmente são incertezas (o cenário atual já é de
incertezas, e o direito também é forma de expressão do ambiente político,
econômico e social). Embora seja possível, algumas vezes, responder como se
posiciona este ou aquele tribunal, este ou aquele juiz, sobre determinado tema,
isso somente ocorre em situações que se repetem mais frequentemente, que se
apresentam mais rotineiramente aos Tribunais (como algumas questões relativas a
demandas massificadas: conflitos
entre consumidores e bancos, telefonias e construtoras, assim como em algumas
lides de natureza trabalhista, tributárias ou previdenciárias). É também possível
dizer, mais ou menos, quais são os parâmetros para certas ações de indenização
por dano moral. Sinceramente, não muito mais do que isso. E não é conversa
fiada… Porém, o profissional pode e deve fornecer o máximo de elementos para
que o cliente possa criar sua própria noção de “custo-benefício” do processo,
do investimento que será a “empreitada judicial”. Por outro lado, essa
“impotência” do profissional diante das probabilidades que o cliente tem de
“ganhar ou perder o processo” não deve servir sempre como argumento do advogado para, por exemplo, convencer o
cliente de que uma determinada demanda é inevitável, ou que um acordo é
inviável... É um equívoco comum de advogados tenderem ao combate, à “briga
judicial”. No início pode parecer bom, pois há a contratação, e o recebimento
de honorários iniciais. Em geral, o cliente também sai inicialmente satisfeito,
como um paciente que prefere sair do consultório médico com uma receita de remédio
para sua má condição de saúde a ser orientado para pequena melhoria da dieta ou
aumento da sua atividade física. Anos depois (e o processo demora!), o cliente
percebe que a opção pela demanda não era a melhor opção (sua saúde não
melhorou). E o advogado será cobrado se a escolha tiver decorrido da sua má
orientação. Mas, reforça-se, muitas vezes, não informar, com algum grau de segurança,
reais probabilidades de êxito de uma
demanda judicial apresenta-se como uma atitude profissional “digna de nota”. E essa incerteza sobre o resultado acontece,
no Brasil, por diversas razões. Há uma que me parece muito relevante, e que me
veio à mente assim que li notícia publicada há algumas semanas no site do STJ, com o título: “É
crime entregar veículo a não habilitados, mesmo quando não há acidente”.
Divulguei-a também na página de notícias da minha sociedade de advogados
(clique aqui). Parece
relevante, não?! Para mim, muito! Vivi uma época em que era muito comum o
empréstimo de carro a menores, sem
habilitação. Não estou dizendo que era correto, nem que meu pai me emprestava
seu carro antes de eu “tirar carteira” (eu estaria mentindo!). Mas, dirigi sim carros
de amigos e parentes sem carteira de motorista, e andei com amigos nessa
condição também (escondido do meu pai, claro!). Isso era feito “naturalmente”, ou
seja, sem maior censurabilidade do meio social, e não havia muita fiscalização
pelas autoridades de trânsito, apesar de que “dirigir sem habilitação” era
considerado contravenção penal (cf.
art. 32. da Lei das Contravenções Penais – Decreto-lei 3.688/1941). Portanto, era
“crime anão” (contravenção) dirigir sem carteira, mas crime mesmo não era; e entregar a direção a alguém sem habilitação tampouco (‼). Porém, o
Código de Trânsito Brasileiro, em
vigor desde 1998, em seu art. 310, estabelece o seguinte:
(é
crime) Permitir, confiar ou entregar
a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada (destaquei) com
habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem,
por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em
condições de conduzi-lo com segurança: Penas - detenção, de seis meses a um
ano, ou multa.
Ora, mas se a lei,
ou seja, se o Código de Trânsito Brasileiro já estabelece isso muito claramente
há alguns anos, então por que isso ainda é
notícia?? Por que os Juizados Especiais decidem against the law?? Usei a expressão contra a lei “em inglês” propositalmente… É que essa autorização
para o juiz decidir contrariamente à lei não é uma particularidade “tupiniquim”
(nem é tão ruim se você tiver que proteger um direito fundamental ignorado pela lei ou pelas autoridades). Não
raras vezes, um dispositivo de lei federal, validamente votado no Parlamento,
não é “razoável”, não está “de acordo” com a Constituição da Republica. Então,
um juiz de uma vara de família ou da fazenda pública pode afastar a aplicação
de uma lei por entender ser “incompatível” com norma constitucional. E, como disse
linhas atrás, isso “não é uma jabuticaba” (costuma-se atribuir o nome dessa
fruta a algo legitima ou genuinamente nacional). Desde 1803, no conhecido
julgamento do caso Marbury vs. Madison
a Suprema Corte dos EUA, “criou-se o
precedente de deixar de aplicar a lei infraconstitucional”, tornando-se
obrigatório, a partir de então, para todos os órgãos judiciais “a atribuição de expressar o significado da
Lei Maior” (cf. SLAIBI FILHO, Nagib. Breve
História do Controle de Constitucionalidade). Mas, o que está
acontecendo no caso da notícia do STJ que republiquei
no site do escritório? É o que o Tradutor Jurídico pretende
– entre outras coisas - explicar. Pode-se dizer que o que os Juizados Especiais
Criminais do Rio Grande do Sul estão fazendo é “mais do que” decidir
contrariamente à lei. Além de se manifestarem entendimento que “acrescenta
razões” não presentes no art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro, tampouco
atendem a orientação jurisprudencial do
Superior Tribunal de Justiça. De acordo com a interpretação dada pelo
Superior Tribunal de Justiça, há crime quando presente a simples ação de permitir, confiar ou entregar o veículo a
alguém não habilitado. O enquadramento da conduta da pessoa como criminosa independe,
portanto, de qualquer outro juízo de
valor, como, por exemplo, da necessidade ou não da ocorrência de lesão ou de perigo de dano concreto. É o que o STJ
decidiu ao julgar o Recurso Especial nº
1.485.830/MG. Como esse recurso foi julgado sob o regime do recurso
repetitivo, ou seja, como é um recurso que representa uma multiplicidade de
recursos com a mesma controvérsia, com fundamentação idêntica, o seu
entendimento deveria orientar o julgamento dos demais tribunais do País. Os
Juizados Criminais do Rio Grande do Sul acrescentam razões não existentes na
lei para configuração do crime, e tampouco seguem orientação sedimentada no
Superior Tribunal de Justiça. Apesar de isso poder ser visto como uma forma de
“rebeldia”, importante destacar que, nessa hipótese, nosso ordenamento jurídico
não impõe categoricamente que a linha de entendimento do Tribunal Superior seja
seguida. Serve como orientação sim, mas não obriga os demais órgãos do
judiciário a decidir igualmente. A Reclamação, contudo, instrumento utilizado
pelo Ministério Público no caso da notícia, serve para fazer prevalecer o
posicionamento do Tribunal Superior. Por outro lado, parece-me que o juiz ou
tribunal que se sinta parte de um sistema não deveria insistir na sua opinião
pessoal em detrimento dos princípios da segurança jurídica e social (tratamento
isonômico, igualitário) e jurídica (previsibilidade) e também econômica (instauração
de processos ou seus desdobramentos representam custos e gastos). O que pode
explicar a “insistência” dos Juizados Criminais desse Estado é a sua tradição garantista (sobre o significado do
conceito apresentado por Luigi Ferrajoli, confira artigo no site migalhas: Um
juiz garantista, de Leonardo Isaac Yarochewsky e Thalita da Silva
Coelho).
O Brasil, todavia, não adota um sistema
de precedentes como se dá nos EUA. Nesse país, também a partir do
julgamento daquele caso (Marbury vs.
Madison), a concepção do stare
decisis (“respeitar as coisas decididas e não mexer no que está
estabelecido”) tornou obrigatório o respeito ao precedente judicial. Nesse sistema, o cidadão e os operadores do
Direito em geral podem ter uma noção bem mais segura sobre o destino da demanda
judicial. Isso, muitas vezes, revela a desnecessidade ou a inviabilidade da
disputa judicial, incentivando a autocomposição. Apesar de o novo Código de Processo Civil
(que entrará em vigor no mês que vem) valorizar mais os precedentes, a comunidade jurídica ainda precisa amadurecer culturalmente para que efetivamente
o instituto vingue. Isso permitirá que, em alguns anos ou décadas, haja maior
segurança jurídica, maior previsibilidade, e que os operadores do Direito possam
informar com mais ou menos exatidão sobre as chances de êxito do seu cliente ou
consulente. Em sequência, abordarei no próximo post, a necessidade da coerência
para o sucesso do sistema de precedentes, tendo em vista a notícia
sobre a emblemática decisão do Supremo
Tribunal Federal no Habeas Corpus nº 94.624.